segunda-feira, 22 de novembro de 2010





Lançado

NA BORDA DA ILHA

de Assis de Mello.


Apresentar Assis de Mello nesta sua primeira coletânea é expressar o prazer da descoberta de algo que se julgava exíguo, na extinção das corredeiras que se afunilam como filetes de água nas florestas.
Muitos são os que se aventuram na alta arte do fazer poético, mas poucos são aqueles que a alcançam. O professor, o biólogo Francisco de Assis Ganeo de Mello é uma daquelas surpresas raras que surgem do acaso, da despretensão. Ele escreve porque sua alma assim o pede e articula com primor a linguagem da poesia de maneira espontânea, sem apelar para modismos caducos ou para a superficialidade do anedótico.
Sua poesia, sem que ele se esforce para tal, caminha em versos de pulso rítmico e é tocada por rimas livres bem distribuídas que reforçam a força imagística do texto.
Em seu primeiro livro, NA BORDA DA ILHA, ele reúne poemas escritos ao longo de sua vida, entre uma pesquisa no laboratório ou uma aula na Universidade.
Agora, ele se rende à tradição do livro “com capa e páginas” que, certamente, serão folheadas e relidas, além de obterem o justo reconhecimento no panorama da nova poesia brasileira.
Então, para melhor apresentá-lo e ratificar o que pretendo, presenteio o leitor com esses belos e instigantes versos do poeta:
Na estação das águas
contemplo os canteiros das bruxas
: no estio
retiro os camarões das tocas
- eis de onde vem minha extrema felicidade
em abraçar o mundo
Não haveria, decerto, maneira mais luminosa para concluir essa apresentação e dar as boas vindas ao poeta Assis de Mello.
Denise Emmer.
PREFÁCIO
A poesia de Assis de Mello em NA BORDA DA ILHA é predominantemente voltada para as pequenas coisas, qualquer latejar é um caro amigo que tenho, pois tudo / reinventa o segredo das conchas. Intimista e confessional, expressa uma relação amorosa com o mundo: Já paraste num acidente da paisagem / pra sentir nesses átimos / teu próprio respiro ? / dessas coisas / me nutro.
Poeta do detalhe, celebra a ousadia / de um sol nas omoplatas / um pequeno bivaque na serra / a lua nos dentes, a lentidão nas horas. Mas em cada experiência do particular também vislumbra o todo; no microcosmo o macrocosmo, como ao enxergar o universo nos olhos de uma novilha, em Nos Campos do Norte. É uma percepção do mundo que se traduz poeticamente através de oxímoros, sinestesias, correspondências: Parte das horas / cai escura / como o mogno / A noite é branca / O sono tem a luz da tona. Especialmente, as correspondências entre corpo e natureza, como neste tão lírico neblina fêmea que serena sobre meu corpo / distante / no mais velado dos silêncios / e o torna volátil a sonhar tua pele / teu gosto / teu cheiro / e tuas umidades / todas.
São poemas com algo de relato. Assis de Mello conta pequenas histórias, oferece fragmentos, momentos especiais, de sua própria biografia. Mas essa história pessoal confunde-se com história do mundo todo: Falo das línguas e das bocas / e de cada um dos gemidos / que não ousamos conter / no turbilhão de santuários / que nos coseram no tempo.
Com um pé na contemporaneidade e outro na antiguidade, dialoga com Vico, Nietzsche, Heráclito, Blake, Ungaretti, Neruda, Celan, e com aqueles poetas de hoje aos quais faz dedicatórias. Quer tornar presente o passado e eternizar o presente. Este verso podia ser uma epígrafe geral, do livro todo: E hoje é tudo. Isso, porque sua poesia é sobre o tempo, e também busca sua anulação. É tempo total: os escribas de Hamurabi / os grão-vizires / Bach e o tropel dos hunos / ressoam / em minhas manhãs. Os vários tempos da poesia.
Não há, em NA BORDA DA ILHA, menção diretas a Deus, divindades, entidades transcendentais, símbolos de cultos religiosos. Ainda assim, seria possível, a propósito de Assis de Mello, falar em misticismo, em uma poesia vivida como experiência religiosa? Sim – mas de uma religiosidade pessoal e de uma religião da própria poesia, secular e profana. Algo afim ao que Novalis proclamou: Mas o verdadeiro poeta sempre permaneceu um sacerdote, assim como o verdadeiro sacerdote sempre permaneceu um poeta – e não deveria o futuro nos trazer de volta esse antigo estado de coisas? E, reiterando: No mundo antigo, religião já era até um certo ponto o que se tornará para nós – poesia prática.
[1]
É bem arcaica a associação do poeta ao visionário, e da criação poética ao delírio inspirado. Justificando-a, todos aqueles poetas que transitaram na fronteira entre lucidez extrema e loucura; por vezes, a exemplo de Nerval, ultrapassando-a. Assis de Mello a reafirma: Pelo umbral da expiação / venha a outra / a companheira / ter conosco a divindade / de um delírio. E o tema da loucura, das associações de experiência poética e loucura, acompanha NA BORDA DA ILHA: Desde que enlouqueci / ganhei novos direitos / e um novo dialeto [...] recito duma cartilha / que poucos saberão solfejar. Por isso, cá estamos / com essa exclusiva insanidade / cotidiana, podendo proclamar que bendita é a chuva na loucura nossa. Tal ‘loucura’ é lucidez extrema. Novamente, cabe o paralelo com Novalis, que, em um de seus derradeiros fragmentos, já afirmara que Um mágico é um artista da loucura. E neste trecho famoso, particularmente visionário, que A loucura comunal deixa de ser loucura e torna-se mágica. Loucura governada por leis e em plena consciência. Todas as artes e ciências repousam em harmonias parciais. Poetas, loucos, santos, profetas.
Outra frase que poderia ser epígrafe do livro todo: poesia é submersão. Por isso, seu mundo pode ser sublime, e também aquele do horror, como no expressivo poema sobre o expressionista Edward Munch, ou na denúncia de um mundo em rasgadura / de um inocente esquartejar. Constatações da dureza do real imediato, ou descidas iniciáticas aos infernos? Ambos, provavelmente, como nos dramáticos confrontos do eu e o outro, sujeito e objeto, no poema intitulado Predador, e nestes versos fortes: Daí o rasgo / a vulva de arenito e estanho / onde me dobro qual um verme / na moela de um abutre – assim equiparando-se a Prometeu, ou oferecendo sua leitura pessoal desse mito.
Mas o que predomina em NA BORDA DA ILHA é a delicadeza, como em Ocarina; a celebração do encontro amoroso, com os dedos leves / num gentil prelúdio / de um dedilhar de mulher. O encontro amoroso equivale à superação de opostos: O sopro morno / nas entranhas / da argila / dura.
É poesia que expõe uma poética, mas sem ser cerebral e discursiva. A poética do navegar na contracorrente, e opor-se ao senso comum, ao prosaico. Para ele, poesia é arar o mar & nadar contra gumes de facas.
Em especial, há uma complexa reflexão filosófica nas entrelinhas do poema sobre os vocábulos dinamarqueses, os drøm behageligt, hemmelighedsfuld, måne // stjerne, jomfruelig pige. Nem precisava ter posto ao lado as traduções desses vocábulos; podia deixá-los como glossolalias, sugestões a serem preenchidas pela imaginação do leitor.
O mais importante, entre as várias qualidades de NA BORDA DA ILHA: a síntese ao captar o instante de encantamento; seu registro com a precisão dos bons hai-kais: a imagem / na água / um silêncio branco / a leveza das penas / seu olhar / em meus olhos / um gosto na boca. Há um quase nada, minimalista, que ao mesmo tempo expressa tudo, ao vislumbrar que Estilhas / talharam o dia / quando a pedra / caiu.
Canto do Cisne é o título de um dos poemas de Assis de Mello, sugerindo que chegou a um fim. Mas sua leitura transmite a impressão oposta, de que está começando; ou sempre recomeçando, reinventando-se a cada poema.
Claudio Willer
[1] Esta e as citações a seguir de Novalis, tirei-as da edição de seus fragmentos filosóficos em Novalis, Philosophical Writings, translated and edited by Margaret Mahony Stoljar, State University of New York Press, Albany, NY, 1997.

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